Nas noites de domingo, saíamos em campanha para oferecer pão e toddy aos moradores de rua. A rota, pelo baixo centro de Belo Horizonte, procurava atender ao maior número de moradores. Da Galeria do Ouvidor, descíamos para a Praça Rui Barbosa e seguíamos para a rua Guaicurus, finalizando em frente à rodoviária, no grande monumento em L da Afonso Pena.
Numa dessas noites, de atmosfera mais pesada, encontramos sentado num dos bancos da Rui Barbosa, um homem negro e bem vestido, com suas mãos na mochila. Olhava para o chão. Aproximamo-nos, desejando boa noite e oferecendo o pão. Aceitou dizendo que não estava sendo uma noite fácil, acabara de ser assaltado por um colega de rua. Por não encontrar nada, o assaltante com uma faca cortou seu pescoço e abriu uma ferida sem sangue.
Por dentro, uma carne rósea e úmida, brilhante como a carne de salmão. A praça mal iluminada tinha árvores que impediam o luar passar. O rosto negro do homem aparecia e desaparecia na escuridão. Seu corte rosa quartzo abriu toda claridade de um universo que se esconde na sujeira da rua.
Faço ideia a ardência dos cortes superficiais proferidos com raiva. A faca, sem encontrar algo de valor, quis então se manter na lembrança do outro.
O homem me contou sua história.
Pelas caminhadas que já fiz pela Campanha do Pãozinho, percebi como a horda de moradores de rua não é homogênea. Carecem de espaço de fala e espaço pra narrar. Nesta noite de atmosfera mais sombria, o homem parecia não se importar com o incômodo da ardência, narrava com calma e empenho os fatos recém-sucedidos.